Quando me deparei com esta edição maravilhosa de 50 anos de Laranja Mecânica, não resisti pela beleza e pelas ilustrações. Geralmente prefiro a primeira edição dos livros ou a capa mais bonita, e esta além de ser em hardcover com dust jacket e tudo, contém extras.
Eu até já pensei que tinha desvendado o mundo da ultraviolência e condição mecânica com o filme de Stanley Kubrick (resenha sofrida aqui), mas eu nada sabia sobre esta maravilhosa obra chamada Laranja Mecânica. Lançado por Anthony Burgess em 1962, foi escrito com objetivo de obter uma renda para a família, pois Burgess recebeu um diagnóstico errado de que teria pouco tempo de vida. Como sabemos, o escritor viveu muitos anos para ver seu livro fazer sucesso e ser censurado em diversos países, até chegar a ser adaptado brilhantemente para o cinema por Kubrick em 1971.
Laranja Mecânica é um termo que Burgess escutou certa vez num bar: "fulano é tão estranho quanto uma laranja mecânica". Ele quis usá-lo por quase 20 anos, quando surgiu a ideia de escrever sobre a cura da delinquência juvenil e lavagem cerebral, viu imediatamente um paralelo com o desenvolvimento humano, que é tão orgânico quanto uma fruta, e condicioná-lo é transformá-lo em uma criação mecânica. Havia nascido então, a distopia Laranja Mecânica.
Alex é um adolescente típico daquela época em Londres - num futuro paralelo - onde os jovens se dividem em grupos e usam um dialeto próprio - o nadsat - que o autor criou com a mistura de inglês com russo. Ler as primeiras páginas do livro é uma tarefa complicada por conta deste dialeto, mas nada como um glossário completinho nos extras para nos salvar.
Alex com seus druguis (amigos), se reúnem as noites no Korova Milk Bar, onde tomam seu Moloko Vellocet (leite com drogas psicodélicas) e saem por aí para uma noite horrorshow (legal), onde a diversão é bater em mendigos e invadir casas. A violência narrada é pesada (o próprio Alex nos conduz por sua história), mas como Burgess diz nos extras, ele precisava que entendêssemos a perversidade de Alex e apesar de receber muitas críticas pelo uso da violência, era algo que ele não teve nenhum prazer em descrever. Ele conta uma curiosidade: sua esposa foi vítima de um grupo violento durante um blackout em Londres em 1942. No livro, o velho escritor que tem a casa invadida e a esposa estuprada, estava escrevendo um livro chamado Laranja Mecânica (amo extras em livros).
Recriação fantástica do Korova Milk Bar.
Ao ser traído por seus druguis e pego pela polícia, Alex vê a chance de liberdade em uma nova técnica implantada pelo governo: a técnica Ludovico. No tratamento, ele é medicado para se sentir mal enquanto é obrigado a ver cenas de extrema violência. É uma técnica de reforço negativo. Logo, o jovem Alex não consegue mais ver ou pensar em cenas violentas sem se sentir imediatamente enjoado.
Ao sair do hospital, Alex sofre nas mãos daqueles que ele fez sofrer. Encontra o velho que espancou no início do livro, encontra seus ex druguis, e até mesmo o velho escritor de Laranja Mecânica, que aproveita para torturá-lo. Nas entrelinhas a reflexão: serão suas vítimas pessoas menos piores do que Alex?
O filme de Kubrick foi excelente e muito fiel ao livro. Aproveitei para revê-lo após terminar o livro e algo que eu também descobri nos extras é que a versão norte-americana do livro foi impressa sem o capítulo final pois foi considerado "britânico demais". Tanto o livro quanto o filme acabam justamente com Alex dizendo "eu estava realmente curado", porém, a versão original tem um capítulo a mais. Mais uma razão para quem já gosta do filme, ler o livro!
duas cenas famosas do filme, ilustradas no livro por Dave McKean.
Por fim gostaria de falar sobre a narrativa. É escrito de uma forma simples, como se fosse um adolescente mesmo falando com a gente. Usa-se muitos "tipo assim" e onomatopéias. Ao ler a primeira página eu pensei "não é possível que seja mal escrito assim" e em questão de segundos percebi que o autor queria que nos aproximássemos do Alex como alguém real, que fala o nadsat e é apenas um adolescente contanto sua história e não um escritor de verdade. A reflexão gerada é extremamente atual e relevante, me lembrou demais o argumento "bandido bom é bandido morto", o que nos leva à nosso atual governo (brasil e mundo) e suas diferentes técnicas de "recuperação" marginal. Eliminar o ser humano cruel garantirá uma sociedade sem violência? O uso de métodos violentos para curar uma sociedade violenta, se autojustifica?
Me envergonhei de ter sentido tanto carinho por Alex quando vi o filme pela primeira vez e ainda mais agora ao ler o livro, mas com o último capítulo que eu não conhecia, percebo que a intenção do autor era de "humanizar" o jovem, que é ao mesmo tempo tão cruel e carismático. Livro favoritado e o pequeno Alex sempre na memória.
"O que tentei argumetar com o livro, era o fato de que é melhor ser mau a partir do próprio livre-arbítrio do que ser bom por meio de lavagem cerebral científica." Anthony Burgess.
Tema do mês de março: Filme ou Livro?
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